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     Texto e fotos:  Roberto M.F. Mourão (roberto@albatroz.eco.br)
                                 Albatroz Planejamento 

 

Estudo de Caso

Trilhas de Longo Percurso

Overland Travel: África, de Londres, UK a Dar-es-Salaam, Tanzânia, 1985-86

Um Safari pela África, de caminhão
Um relato parcial para ilustrar uma viagem por "trilhas" de longos percurso e duração.

 

Cruzando o Continente Africano


africa truck yellowA viagem foi feita com apoio da agência mas usando um caminhão de um ex-guia que já havia feito a viagem um par de vezes.

O caminhão, um Leiland off-road, usado, comprado do exercito inglês, que teve sua carroceria alongada e adaptada com bancos de madeira compensada com assentos de espuma, coberto com lona plástica com janelas plásticas. 

Equipado com material de camping, tanque de combustível extra e provisionamento de água potável e mantimentos para 15 dias, que foram sendo repostos na medida que avançamos. Nas laterais, importantíssimas, afixadas as "sand mats", esteiras de aço perfuradas para desatolar o caminhão tanto na lama como na areia.

africa tribal human 3 womanafrica tribal human 2 womanafrica tribal human 4 man warriorImportante destacar a necessidade do planejamento e apoio de uma agência experiente em uma viagem dessas na época: ainda não era possível usar cartões de crédito, não havia celular e gps era um equipamento de uso militar, caríssimo. A navegação era feita por mapas - destacando os mapas da Michelin, com o uso de mapas da aeronáutica americana para cruzar trechos como o Chade onde o Saara é uma mar de dunas.

Éramos um grupo de 22 pessoas: 15 homens e 7 mulheres, 15 ingleses, 6 australianos e eu, brasileiro.

Todos na mesma barca, rumo a África. Ávidos por ver, ouvir, cheirar, tocar, sentir, amar, odiar, enfim, propostos a conhecer e viver todo o possível de um continente.


A Rota Londres - Dar-es-Salaam

africa map route

Click neste link ou no mapa para ver mapa da rota e detalhe da viagem.

O que a princípio me pareceu uma prova de resistência física, logo mostrou-se um "desafio emocional", quando a convivência diária, com raríssimos momentos de privacidade, nos dividiu em grupos de quatro ou cinco companheiros, carinhosamente denominados ”sindicatos”, unidos por afinidades, temperamentos, valores, que se opunham ou aliavam dependendo dos humores e decisões. Meu ”sindicato” era formado por 5 pessoas: Steve Hanman e Greg Connors, australianos, os ingleses David ”Aldy” e David Cavaliero, e eu.

Fisicamente, nos acostumamos à poeira constante, solavancos e a ser nocauteados pela diarréia. Com uma média de dois banhos semanais e um recorde de um em dez dias, no deserto, ao atravessar o Sahel, a sujeira já não nos assustava, mas valorizava o prazer de um banho e de uma roupa limpa.

Destaco de meu diário, quando demoramos nove dias para atravessar o Sahel, no Chade:

Terça-feira, 7 de janeiro de 1986: ”Finalmente terreno firme. Parece sonho sentar no caminhão, à sombra. Foram dias de sangue, suor e lágrimas. Ainda tenho o corpo moído dos dias passados. Tenho arranhões nos braços e cabeça. Meu pé esquerdo está ferido, com certeza, devido à falta de higiene. Procuro manter-me o mais limpo possível, mas só podemos utilizar água para beber e cozinhar. Só nos é permitido lavar as mãos e o rosto. Meu ultimo banho foi em Zinder, dia 28 de dezembro do ano passado! Nunca me senti tão sujo e o interessante (e triste): me acostumei à sujeira.


Deserto, Selva, Sahel, Savana, Silver Sand Beach

africa sahara dunesNo deserto do Saara, percorremos cerca de 8 mil quilômetros através do Marrocos, Argélia, Niger e Chade. 

Para a travessia do Saara, escolhemos a mais confiável e popular das trans-saarianas: a Rota do Hoggar, que liga Ghardaia, no norte da Argélia, a Agadez, em Niger, passando pelas cidades-oásis de El GoleaIn Salah e Tamanrasset.

africa dakar logoRota conhecida por ser a espinha dorsal do traçado original do Raly Paris-Dakkar, deve ser atravessada preferencialmente no inverno - de dezembro a fevereiro.

É no deserto que começa a “trincar” nosso contato com o mundo civilizado, descobrimos que as estrelas se movem e admiramos a rusticidade da vida tuareg.

Você espera encontrar uma paisagem estereotipada de dunas e dunas de areia a perder de vista, e se surpreende com constantes as alterações. Ora ela se transforma em planície, ora surgem rochas imensas, escuras e avermelhadas.

Às vezes, à noite, eu pegava uma manta, me afastava do acampamento e me recostava sob aquele manto de estrelas, imerso numa sensação de paz e isolamento, sentindo-me menos palpável perante o universo do que um grão de areia perante o Saara.

Nossa rota serpenteava através da República dos Camarões, República Centro Africana, Congo (na época Zaïre) e Rwanda.

A chegada a Camarões foi marcada pelo reencontro do Atlântico, em seu ”lado de lá”, para nós brasileiros. As semelhanças entre esse trecho da África e a costa norte do Brasil me provocaram um bombardeio de saudade.

Creio que o Congo foi o país que mais lembranças me deixou. De inicio, tomamos um autêntico African steamer através do Rio Zaire: o m/v Colonel Kokolo – tive a sensação de estar num dos afluentes do Amazonas –, e por quatro dias navegamos de Bumba a Kisangani, 500 quilômetros rio acima.

Na realidade, o Colonel Kokolo é um conjunto de barcaças unidas umas às outras, formando uma verdadeira cidade flutuante. Acampamos sobre o teto da barca. E nela tudo acontece. Se seu bilhete é de segunda classe, prepare-se para dividir quatro beliches com uma dúzia de pessoas, a maioria com bilhetes iguais aos seus. A terceira classe lembra os filmes bíblicos de Cecil B. DeMille, e eu acrescento: produzido no Paraguai. A passagem inclui duas refeições por dia, o resto pode ser consumido nos diversos restaurantes de ”comida caseira”, onde experimentei ”iguarias” como carne de macaco desfiada no caldo de feijão (?) e centopéias fritas que visualmente lembram camarão. Sobrevivi. De sobremesa, frutas suculentas.

À noite, pasmem, cerveja geladíssima, a meio dólar, no “american bar” do porão de carga da barcaça de segunda classe. Musica local, luz amarelada para criar o clima e conversava-se uma salada de inglês, francês e swahili noite adentro.

Antes de dormir, recostados no ”dormitório”, com brisa fresca e ruídos noturnos, enrolava-se um cigarro com uma estranha erva verde escura, vendida em sacolinhas de folhas de bananeira pelos pigmeus, que dá "uma gostosa sensação de relaxamento e faz esquecer o corpo moído de cansaço e os sonhos quase reais".

Ao desembarcar em Kisangani, senti os sintomas de quem foi vítima do mais temido animal local: o Anopheles, mosquito transmissor da malária. Foi uma semana de febre e delírio. Dos 72 quilos que pesava no momento, fui a 64. E a única vontade era de voltar para casa. É nessas horas que se toma consciência do quanto nós seres humanos somos frágeis.

Mas minha capacidade de recuperação me surpreendeu e, em menos de duas semanas, lá estava eu a escalar o vulcão Nyrangongo, às margens do Lago Kivu, 3.506 metros acima do nível do mar.

overland SilverBack marricheNormalmente a expectativa é encontrar na África as feras – particularmente os ”Cinco Grandes”, leão, búfalo, elefante, rinoceronte e leopardo –, na savana, e foi no Parc National du Kahuzi-Biega, nas montanhas próximas da fronteira Congo-Rwanda, que tive o mais emocionante contato com a vida animal.

africa gorilla silverback illustrationRastreamos, com guia e batedores do parque, uma família de gorilas da montanha, liderados por um silver back (com pelos dorsais esbranquiçados) de 1,80 de altura e cerca de 250 quilos.

Por cerca de uma hora seguimos selva adentro, admirando o grupo, liderado pelo Marriche (patriarca, em swahili), até que a certa altura, tendo um dos batedores cortado alguns galhos para melhor visão dos animais, Marriche enfureceu-se e ameaçou um ataque. ”Don’t move” (”não se mexa”), sussurrou Jean Bruno, o guia, e eu suei frio por um instante que me pareceu eterno, até que Marriche recuou, devagar, ofegante da descarga de adrenalina, recostando-se, a nos observar. Tínhamos abusado de sua paciência.

Após cruzarmos Rwanda – considerada a ”Suíça africana” por seu relevo e clima – finalmente chegamos à savanas, último trecho de nossa jornada.

SAHEL

Creio que para muitos – e aqui me incluo – a imagem da África se traduz em vida animal. Quem é que ao ver simba (leão, em swahili) não associa a África à sua majestosa figura ?

Kenya e Tanzânia, em suas reservas e parques, concentram o maior número de animais selvagens. Um paraíso de dentes, garras, bicos, cascos e chifres. Um paraíso ameaçado pelo mais terrível e inadaptado animal: o homem. Rinocerontes cujos chifres chegam a valer milhares de dólares tiveram sua população, no Quênia, decrescida de 20 mil para menos de 500, em 20 anos, vítimas de caçadores clandestinos. Sem que haja uma política de proteção séria, voltada para a natureza, o colapso será inevitável. Não é a primeira e nem será a última vez que o homem perderá o direito ao paraíso.

Perfeitamente adaptada à savana, vive uma raça, que me encantou: os masais. Belos, esguios, elegantes, envoltos em mantas de cores quentes, que vivem em cabanas de barro, pastoreando seu gado.

africa tanzania silver sand beach boatNossa jornada terminou em Silver Sand Beach, na costa da Tanzânia, onde o ”sindicato” se dispersou.

”Aldy” seguiu para a África do Sul, no caminhão. Greg, capturado pelos encantos de Pauline, uma neozelandesa do caminhão de amigos que fizemos na jornada, seguiu para Victoria Falls. David Cavaliero ficou perambulando por mais tempo pela África.

Eu e Steve, impregnados de imagens e experiências, tentamos uma carona de barco a vela de mercadores para o Egito ou Sudão e...

 

Bom, mas aí já é outra estória...

 

 

 

 

África, de Londres, UK a Dar-es-Salaam, Tanzânia, 1985-86

Informações da Viagem / Long Haul Expeditions 1985 (pdf para download)


Trlhas Off-road / Overland Travels

 

Trilhas